PANACÉIA DELIRANTE

sábado, 3 de abril de 2010

Na rede

Eu tinha dez anos. Era costume, nessa época, passar os finais de semana na casa de praia. A família inteira se reunia: as crianças corriam pelo jardim enquanto os adultos tomavam cerveja discutindo política e futebol. Ainda tinha o videokê, de maneira que as tardes eram embaladas pelo som desafinado dos cantores de fim de semana.

Nesse dia, minha prima estava na rede com o namorado, quase dormindo, enquanto eu esperava a minha vez de demonstrar meu talento musical. Não me lembro quem estava cantando antes de mim e nem tampouco qual a música que desencadeou a cena: ela chorava copiosamente nos braços do namorado, que a consolava com paciência.

Outrora, estava noiva de outro rapaz, que também chegou a freqüentar nosso retiro familiar. Um acidente de moto, porém, interrompeu os planos do casamento, transformando em viúva aquela que nem havia chegado a ser esposa.

Por isso, nesta tarde, a moça chorava tanto. A música reforçava a ausência do noivo, a perda repentina, lembrava os momentos vividos naquela mesma casa (quem sabe se naquela rede?). Acabou a brincadeira, a cerveja, a cantoria... Tudo era apenas dor e constrangimento. As pessoas corriam para buscar um copo d’água, desligar o videokê, pegar um lenço, um calmante, qualquer coisa. Eu, parada, olhava apenas para ele.

Ela chorava a perda de outro nos seus braços e ele não se queixava! Agüentava tudo com resignação, abraçando-a com força enquanto ela berrava desconsolada. Tive pena dele - mais do que dela - achei tão humilhante aquela situação em que se encontrava, à mercê de uma canção, exposto aos habitantes da casa, esquentando a cama que o morto esvaziou. Minha mente infantil não conseguia compreender tamanho grau de desprendimento, embora enxergasse no gesto do rapaz a demonstração de alguma forma de afeto muito superior a qualquer experiência que já tivesse vivido. Tinha apenas dez anos quando descobri que nada sabia dos homens e dos sentimentos.

E ainda hoje, não sei...

Um comentário:

Eduardo Medeiros disse...

Uma significativa cena que por certo, teria que ficar em sua lembrança.

abraços